sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Crônicas do Sabiá: O Tronco, o menino e o mosquitinho



Era um carnaval rançoso de 1980 e muitos. Faltavam poucos dias para o fim do verão e sobravam poucas das mais poucas almas brincando pelo Sítio do Sabiá. Para completar o tédio, o dia estava chuvoso e a televisão estava fora de operações.
Éramos cinco crianças esquecidas pela ressacas dos adultos e decidimos imaginar cenas e aventuras por aqueles gramados íngremes, pedras e troncos cobertos de limo.
A mais velha, que tinha lá por seus 15 anos, puxava o batalhão. Corríamos morro abaixo, subíamos as goiabeiras molhadas, gritávamos para ouvir o eco. Havia apenas um menino no pequeno grupo, meu irmão Pedro. Ele, sem dúvida, era o mais entediado.
A tarde começava a dar sinais de cansaço quando avistamos um tronco, quase histórico, cheios de pregos e gosmas do tempo, que lhe concediam um ar um tanto quando sombrio. Aquele foi batizado imediatamente de “O tronco da morte” e a brincadeira era simples, todos deveríamos atravessar o tronco sem cair. O último seria a mulher do padre!
Eu tive medo do tronco, naquela época, achava que não havia mal nenhum em ser a mulher do padre! Então fui a última da turma a entrar na brincadeira. A mais velha foi a primeira a cumprir a tarefa e Pedro foi logo atrás, ele não seria a mulher do padre, nem mesmo se o padre fosse uma linda loirinha mijon

Eu tinha colocado, corajosamente, meus dois pés de sete anos de idade sobre o tronco e quando vi meu irmão perder o equilíbrio e cair de joelhos sobre o tronco.

O primeiro instinto de uma irmã caçula foi a gargalhada. O Pedro riu também, enquanto tentava se levantar. Meu irmão sempre foi tão corajoso, e ele era orgulhoso. Orgulhoso demais para admitir para um bando de meninas que estava doendo, mas logo ele percebeu que não conseguiria se levantar.
- Ih, acho que tô grudado num chiclete!
- Pedro, tu tá sangrando!
- PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII, o mano se machucou! PAAAAAAAAAIIIII! PAAAAAAAAAAAIIIIIIII!
Nesse momento, choro instalado nas quatro meninas, pais e mães de todas as casas desciam a colina aos tombos e mas o Pedro, sem uma lágrima no rosto, apenas a mão sobre o joelho. Eu seguia a suas orientação: não olhar e gritar pelo nosso pai.
Em uma operação de mais ou menos 15 minutos, meu pai retirou o meu irmão das “unhas sanguinolentas do tronco da morte” e o colocou, heroicamente, sobre a mesa de churrasco.
Eu chorava compulsivamente enquanto o médico que também passava o carnaval no sítio tentava acalmar as famílias que estavam ali a assistir a vítima do tronco.
- Tá zuzu bein, vem um mosquitinho e dá uma picadinha, daí não dói mais, fiu Petro!

É, foi nesse dia que meu irmão decidiu ser médico... e foi nesse dia que eu conheci as aroeiras e que eu entendi que heróis também sangram.

 

"One love, one blood
One life you got to do what you should.
One life with each other: sisters, brothers.
One life, but we're not the same.
We get to carry each other, carry each other.
One love! One!"

Bono Vox


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